Todos os dias me olho no espelho e não posso esconder: não gosto do que vejo.
E hoje não foi diferente.
Tem dias que dói menos, que dá pra disfarçar. Tem dias em que eu apenas não me importo.
Ser mulher é muito mais difícil do que eu poderia ter previsto. Acho que ainda não me acostumei.
Vinte anos de vida, mas menos de cinco realmente sendo mulher. E acho que só nos últimos dois que eu venho sendo realmente empurrada pra dentro dessa realidade inevitável, pra esse julgamento todo.
É terrível como a beleza é tratada como parte de uma obrigação, uma utopia que deve ser perseguida a qualquer custo. E, em caso de impossibilidade, lamentada constante e indefinidamente.
Como se quem não for absolutamente belo em todos os aspectos tenha a obrigação de se envergonhar, de se esconder, de sentir-se obsceno e indigno, desmerecedor de um lugar ao sol.
Como se não bastassem as pressões morais e intelectuais.
A visual parece se colocar acima das demais, na posição de quem massacra. Dilacera.
É realmente difícil lidar com isso.
Especialmente porque nem eu, nem ninguém, escolheu a maior parte disso tudo.
Não escolhi meu desenho, minha pele, minha cor. E nem sei se gosto do pouco que pude escolher - creio que não. É complicado.
E aí que eu cresci com esses olhos enormes e essas sobrancelhas expressivas, em forma de acento circunflexo, escuras e delineadas. Sem falar em mais alguma coisa no desenho do meu rosto que parece anunciar aos gritos minha etnia.
Logo eu, que sempre me achei tão comum e invisível, às vezes acordo me sentindo estranha, como se aquilo não correspondesse a mim.
E hoje foi um desses dias, em que me estranhei com o espelho, desejando que as cores e as formas em mim fossem diferentes. Então lembrei dessa mulher, que entrevistei há pouco mais (ou menos, a memória não ajuda) de um mês.
Era uma desenhista de figura humana realista. Ela me mostrou desenhos e fotos, contando sua longa e um tanto dramática história. Eu, acostumada com essa posição distante, na qual até me sinto confortável, ouvia atentamente - esperando que ela nem ao menos olhasse para mim, como implicitamente combinado nessas situações.
Gosto dessa sensação de ser invisível, me anular um pouco, me esquecer e pensar no outro, no objeto da matéria: a pessoa que está me contando sua história.
Pedi que ela desenhasse um pouco para que eu tirasse algumas fotos, ao que ela atendeu prontamente. Enquanto desenhava, contou que sempre começa os desenhos pelos olhos, que são partes importantíssimas da expressão da figura.
"Eu também", pensei em silêncio, sem me preocupar em categorizar a irrelevância do fato de eu ser também uma desenhista e de, em algum lugar perdido no tempo, ter travado uma breve batalha com retratos realistas.
Então ela me olhou, pela primeira vez em quarenta e cinco minutos de conversa, de um jeito que me fez ruborizar. Foi tão inesperado que eu não soube o que fazer.
Ela olhava bem dentro dos meus olhos.
"Você é descendente de árabes?"
Foi até um pouco assustador como o foco passou para mim. Tanto que só consegui responder, gaguejando um pouco, que sim.
"Seus olhos são enormes, lindos. Dá pra ver claramente a descendência árabe no seu rosto", ela falava, me olhando atentamente, enquanto eu tentava, sem sucesso, decidir o que dizer.
Ela desandou a falar sobre como ficaria lindo um desenho no qual eu estivesse vestida de odalisca e uma porção de outras coisas desconcertantes. Então ela disse algo que me tirou do sorrisinho amarelo e me fez voltar a ruborizar.
"Não deteste seus olhos. São lindos."
Me deu vontade de perguntar como ela sabia que eu detesto meus olhos. De dizer que eles não são lindos coisa nenhuma, que são enormes e medonhos e que não há jeito algum nesse mundo de gostar deles sob absolutamente nenhum aspecto.
"Eles são marcantes, fazem parte de quem você é."
Eu agradeci, gaguejando novamente. E sorri, dentro das possibilidades da timidez.
Como tudo que concerne a mim e minha aparência, logo afastei tudo isso de meus pensamentos. Acho que não sei lidar com elogios e isso é uma das maiores provas disso. Não contei para ninguém. Com que cara eu faria isso? Aliás, quanto menos eu puder falar de mim, especialmente da minha cara, corpo ou personalidade, MELHOR!
Admito que tentei começar a gostar dos tais olhos e, obviamente, não consegui.
E hoje, um daqueles dias especialmente ruins para me olhar no espelho, lembrei dela, a desenhista, e suas frases despretensiosamente lisonjeiras, de sua sabedoria sensível de artista andarilha que adivinhou o que eu sinto.
Olhei meus olhos no espelho e me deu vontade de chorar. E de sorrir.
2 comments:
A maneira como se encara a beleza diz muito sobre uma pessoa.
Mas n tem fórmula de jeito melhor de encarar, ou de como analisar os critérios de alguém.
Algo me diz q tá fundamentalmente ligado à autoestima.
Não sei porque precisou de uma desenhista para se dar conta da realidade do espelho.
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