É preciso muita coragem pra acordar no meio da noite, pular pra fora das cobertas, num dia frio de arder o corpo todo, e sair correndo. Uma coragem insana, cega e pouco dotada de sensibilidade cutânea e terminações nervosas. É preciso frieza. Talvez um pouco de estupidez e desprendimento e aquela sensação que se impregna de repente, lhe dizendo que não há absolutamente mais nada a perder.
Há de ter algo forte, tão terrivelmente forte que se sinta que é impossível pará-lo com as próprias mãos. É preciso dessa força incontrolável crescendo dentro de si, produzindo uma sensação de total impotência externa diante de sua incomparável e esplendorosa imponência interna.
É preciso muita covardia. Muitas lágrimas rolando rosto abaixo em sucessivas e intermináveis noites raivosas, sem que se saiba exatamente a que se devem, sem que se possa ou entenda um modo eficaz de impedi-las, de contê-las, de compreendê-las, de vivê-las. Somente de tê-las e a fraqueza que inevitavelmente invade na mesma proporção em que o rosto se umedece e salga. É preciso muito silêncio e muito medo e muita muita covardia e falta de jeito pra lidar com tudo isso. É preciso estar total e absolutamente encurralado.
Sentir que o ar que invade seus pulmões, que o sangue que corre por suas veias e que os raios e trovões que mantém seu coração bombando são perfeitamente capazes de, repentinamente, voltar-se contra a máquina que vêm mantendo de modo tão natural, involuntário e aleatório.
É preciso que a insegurança seja maior que o próprio corpo, que a própria vida, que tudo que há de mais sagrado - mesmo a descrença ao sacro e tudo que dele provém e deriva e esterca e deslava.
Para que o corpo todo se torne um pêndulo, uma massa insignificante, servil, obediente, temente. Para que se vire, se toque e ande, se esperte, se entenda, se ajude, se alegre, perdure, se enrole, se embrome, se alimente, entre na fila e abaixe a cabeça, finja, atue, minta, siga o manual, as regras, a etiqueta, os modos, se eduque, se contenha, se contente, se mantenha, se foda e se mate.
Como se nada tivesse acontecido.
1 comment:
forte, vivo raivoso
uma porta para um inferno.......
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