A Refeição de Todos Os Mortos III

Abriu os olhos num daqueles dias em que se questiona tudo.
A começar pelas cores das paredes, aquelas pobres coitadas, entregues aos impulsos coloristas e seus questionamentos posteriores. E sempre deixadas de lado, no final das contas.
Deixando as paredes de lado ("Por Deus, são só paredes!"), deu seus passos preguiçosos até a escrivaninha, e engoliu sua cápsula diária, sempre tomada em jejum.
Seus pensamentos deslizavam entre uma combinação de geléia de figo com queijo prato, e seu desgosto por seus afazeres diários.
Por que havia escolhido aquela profissão, afinal?
Deveria derreter o queijo , ou comê-lo gelado com uma generosa camada de geléia?
Comeu em silêncio, com o olhar perdido. Gostava de simplesmente mastigar, degustar, sem pensar em mais nada. Analisar uma velha mancha na parede, abandonada ao esquecimento da limpeza; ler um rótulo qualquer, vagarosamente, sem ver o que estava lendo.
Achava de extremo mau gosto o hábito de se aproveitar das refeições para instituir um forçado diálogo familiar. Era contra, e seu voto pelo silêncio sempre se fez, sem que fosse contestado ou percebido. Até então.

Continua..