- Não era isso que eu queria. Você sabe a que me refiro. Essa coisa sem cara e sem gosto que a gente empurra com a barriga.
- Nem eu. Mas você queria o quê, afinal?
- Eu sei, mas eu não sei.
- Sinto muito.
- O pior é que é horrível e maravilhoso. Decepcionante e fascinante. Daquelas coisas malucas que prendem a atenção, por menos agradáveis que sejam.
- Eu gostaria mesmo de poder fazer alguma coisa por você. Mas acho que estamos no mesmo barco.
- Claro que estamos. Estamos todos no mesmo barco. Um barco fadado a afundar.
- Mas o que há com você, afinal?
- Como assim? O que você quer dizer com isso?
- Qual é o seu problema? O que te impede de fingir que não percebe esse tipo de coisa, assim como todas as outras pessoas, que provavelmente enfrentam problemas muito parecidos, senão idênticos?
- Eu não me vejo preso em um padrão de comportamento. Eu nem ao menos vejo um padrão de comportamento. Eu apenas sou! Posso não ser tão singular quanto imagino, mas acredito ter liberdade o suficiente para reagir aos estímulos da maneira que considerar mais adequada.
- Lhe ocorre que essa maneira é pouquíssimo adequada?
- A quê?
- A tudo.
- E o que diabos eu deveria fazer?
- Não faço a menor idéia. Mas sei o que você deveria não fazer. E é exatamente isso que você está fazendo.
- Quê seria isso?
- Um bom procedimento. Que renderá muitas coisas boas e proveitosas.
- Um procedimento “bom”, segundo o que você diz. Porém incompatível com a minha concepção de bom proceder, mas que você ainda garante que será proveitoso.
- Claro que garanto.
- Não seria a liberdade mais adequada? A felicidade não estaria mais próxima se cada um agisse livremente, de acordo com suas crenças, preferências e noções de certo e errado?
- E você acha que isso já não acontece?
- Acho que não. Por que mais estaríamos rodeado de tanta infelicidade e desgraça?
- Exatamente por isso que você acabou de falar. Por que a grande maioria liberta-se agindo da maneira que considera mais adequada, mas que está consequentemente equivocada.
- Não faz sentido.
- E por qual razão haveria de fazer algum sentido?
- Eu apenas esperava que fizesse, sem a necessidade de haver uma razão para isso.
- É a miscelânea humana de desejos frustrados. Passa-se uma vida perseguindo um objetivo que acaba se revelando apenas frustrante. Ou insatisfatório. Você está sempre visando algo maior depois disso, não tem fim.
- Não acredito nisso.
- Não?
- Claro que não. Não faz sentido. Ninguém é livre, há tanta regra, tanta lei, implícita ou não, que nos prende a uma realidade que não nos agrada. É por essa razão que ninguém encontra a felicidade.
- E você considera estar completamente destituído de liberdade?
- Considero.
- E ainda imagina a possibilidade de “ser feliz”?
- Acredito que sim.
- Isso foi surpreendente e decepcionante.
- O que você quer dizer?
- Você é tão livre quanto poderia ser. Sem falar na impossibilidade de “ser feliz” sem a liberdade. Quê te impede de arrancar as roupas e correr para a floresta mais próxima, para viver como os animais? Ou de cometer assassinato, furto, suicídio?
- Minha vontade?
- Não é uma mostra de liberdade?
- De que adianta a possibilidade de viver como um errante, ir a extremos, se para uma vida equilibrada eu me vejo obrigado a me encaixotar e cair sobre uma esteira, como um produto em uma fábrica? Com um número de série carimbado. Não há liberdade nesse sistema de ensino, nesse sistema de trabalho. É como funciona: abaixe a cabeça e entre ou ponha-se para fora. Ou atrás de grades, tal qual um animal.
- Agora eu vejo claramente que divergimos nessa questão. A minha concepção de animal é a liberdade. A sua é a prisão. E que somos afinal, senão todos uns animais bípedes e propositalmente pelados? Você só precisa se redirecionar, associar seus conceitos com a realidade.
- Você subestima minha capacidade de percepção.
- Claro que demonstro subestimar. De que outra forma você atingiria seu potencial, até mesmo superando-o?
- Em nada interfere no meu proceder uma idéia sobre mim formada por você.
- Talvez você tenha acabado de encontrar um caminho para sentir sua tão sonhada liberdade.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
3 comments:
socoroooo, meu cérebro explodirááá!
kiaraaaaaaaaaaaaa
lindo o roteiro
de O MESMO...
fiquei pensando que além do roteiro, o título também foi uma grande sacada
esse teu texto ficou com sabor de ESPERANDO GODOT, loucuras à parte
hehe
Post a Comment