Bom Dia, passarinhos!

A luz do sol toca a janela, anunciando a chegada do dia.
Passarinhos presenteiam a manhã com seu canto profundamente irritante, em um ritmo enlouquecedor, no qual não tomam fôlego. Contínuo e profundamente irritante. Os olhos cansados de devaneios lacrimejam de ardência. Seriam necessárias quinhentas mil piscadas para aliviar o cansaço da noite em claro. Não devem ser nem seis da manhã ainda, pensou aquela mente fatigada pelas árduas batalhas contra a consciência. Queria dormir, era o que mais queria. Não conseguia pensar em nenhuma outra coisa que já quisera com tanta intensidade.
Mas as flechas, os pregos, as furadeiras, espantavam a sonolência. Os pensamentos desconexos formavam arcos de raciocínio, que davam continuidade a diversas ramificações, que abriam caminhos para outros tantos pensamentos. Lembrou-se dos remédios e uma chuva de pílulas, cápsulas, drágeas e comprimidos lhe desafiaram os olhos. Queria encher a boca, a garganta, o esôfago e o estômago com qualquer coisa que tivesse o poder de embalar o sono, de fazer os malditos passarinhos morrerem e apagar a luz do dia. Queria a noite de volta, seu direito ao sono, uma normalidade.
Estava com a cabeça cheia do silêncio. Era a coisa mais alta que já havia ouvido. Sufocava todas as vozes, todas as frases idiotas que já haviam lhe dito. Era como se nada daquilo tivesse acontecido. E vinha a lembrança dos momentos constrangedores. Uns três de cada vez, apertando a garganta. Qualquer coisa que te faça parecer tão humano quanto qualquer outro é embaraçoso e constrangedor, vinha na cabeça. Uma mancada, um tombo. Mesmo a menção da possibilidade de que um gás tenha sido expelido. A menção da existência de um orifício anal. Os humaninhos riem e riem. Nem os macacos são tão idiotas. "Vamos todos rir agora, ele caiu!" "hahahaha, ela falou do cu" "Ela errou, ela errou, nossa, que engraçado, hahaha". Humaninhos.. vão rindo. O ciclo sem fim da risada besta. Agora virá a cena da primeira série do fundamental, na qual a aluninha chega dois minutos mais tarde, e é recebida com um coro de seus quarenta colegas: "Atrasaaaadaaaa!". Nada como um uníssomo de quarenta companheirinhos gentis para eternizar seus sete anos. E a caminho da psicóloga, não fala com a mamãe? Mamãe? Não, a mamãe não entenderia. A mamãe não entenderia nada do que uma criança de sete anos vá dizer.
"Que bonitinho filhinha, onde você viu isso?"
"Na droga do inferno, sua velha louca"
"O que você disse filhinha? Espere o comercial..."
"Eu disse que foi na droga do.."
"Filhinha, você sempre vai repetir o que vai dizer, a TV não. Cala a boca e aumenta o volume."

E o sono, cadê? Era esse o problema das pessoas. De uma pessoa como eu, pensando logo nisso, a essa hora. Todos os problemas , todos os problemas, todos são um. Um problema só. A dor, a dor e o paradeiro do sono. Onde o puto se meteu agora? A tarde ele sempre aparece, e ela diz "não, não durma agora que a noite o sono não vem". Faz sentido. Eu guardo o sono pra noite, fico tão bobinha de esperançosa, esperando o sono. E não não não, nada disso, não mesmo. Ele não vem. Sabe fixar? Quando os professores pensam que você tem problema mental e passam a mesma merda quinhentas vezes? Ah, vai saber, as vezes o cara tá lá, de ressaca, nem quer saber de dar aula coisa nenhuma. E passe de novo. Então, nessa hora ele diz que é pra fixar!
Não muda nada, mas ta. Isso foi o que eu mais fixei, desde bem pequena.
Ele não vem. O sono não vem. Se aplica pra qualquer coisa que eu queira.
"AAh, o papai noel não vem!"
"Dane-se, eu quero meus presentes."
"Brincadeira, filhinha, claro que o papai noel vem."
"Eu disse pra se danar, cadê o presente?"
"Haaaa, aqui está ele. Papai noel, o que temos pra ela? Olha filhinha, que bonequinha mais linda o papai noel trouxe pra você!"
"Merda, não era isso que eu queria."
Sono, cadê você seu desgraçado?

Não tem viver nem morrer, o bom é dormir.